Texto de Inês Colaço Fernandes
Tenho ouvido os diretos do Bruno Nogueira. Bruno Nogueira é, para mim, o melhor humorista português atualmente; mas algo me tem deixado extremamente desconfortável - e quando se despede de nós, noite após noite, com o seu “aguentem-se, vai correr bem”, não posso deixar de acusar em mim que algo aqui não está bem.
É óbvio que a minha crítica não se esgota no Bruno, nem é sobre ele que recai - ele foi apenas um dos despoletadores, talvez por o considerar um mestre da palavra, e é, tanto como eu, produto do sistema em que se insere. Nem a minha análise se foca nos limites do humor, pois não é nesse sentido que este debate vai. Prende-se, pelo contrário, nas narrativas e enquadramentos das práticas discursivas que levamos a cabo e perpetuamos, mesmo no dia-a-dia. Especialmente no dia-a-dia. Claro que a intenção destes diretos não é serem grandes eventos públicos - são sim, uma conversa entre amigos à qual nós somos convidadxs a assistir. Mas é aqui que reside: é também nestes espaços privados e familiares que existe uma necessidade de mudanças da consciência, paradigma e por consequência, discurso.
Questiono então, a utilização consecutiva da palavra “cona” enquanto insulto, bem como o cometimento de um “erro” por parte de Nuno Markl ao ter entrado num filme sexual de realidade virtual no corpo de uma mulher, que foi em si mesmo, motivo de chacota. Questiono ainda, no mesmo sentido, que sempre que houve um reparo sobre a futilidade da sociedade, este foi colocado no feminino.
Proponho então uma reflexão sobre as teias das narrativas que nos sustentam.
Li, a propósito, este artigo da Comunidade Cultura e Arte em que, a certo ponto, o autor tem o “cuidado” de colocar as palavras na sua dupla forma genderizada, porque o português é traiçoeiro, e coloca “o/a companheiro/a”, porque, segundo o mesmo, “este jogo de géneros e número é porque não quero ferir susceptibilidades quando andamos tão sensíveis”. Não vou comentar o conceito de “sensibilidade” associado a uma linguagem inclusiva - esse, pode ficar para outro texto - mas não pude deixar de reparar como em toda a restante crónica o universal é utilizado no masculino: “Outros de nós continuam ainda a ter a obrigação e inevitabilidade de ter de ir trabalhar. (…) Médicos, enfermeiros, farmacêuticos, transportadores de mercadoria, padeiros, operadores de supermercados, não interessa. Estamos todos no mesmo barco.”
Sabem que em Portugal, a maioria dos médicos, não são médicos, mas sim médicas (54% dos médicos são mulheres e 46% são homens)?
Sabem que em Portugal, a maioria dos juízes não são juízes, mas sim juízas (58% mulheres e 42% homens)?
Sabem que em Portugal, a maioria dos enfermeiros, não são enfermeiros, mas sim enfermeiras (82% mulheres e 18% homens)?
E a maioria dos advogados não são advogados, mas sim advogadas (54% mulheres e 46% homens)?
Não sou eu quem o diz, é um dos mais recentes estudos (Igualdade de Género ao Longo da Vida) da Fundação Francisco Manuel dos Santos, publicado em maio de 2018 que, ainda que útil para compreender o atual paradigma, contempla apenas o binómio homem-mulher, excluindo pessoas trans e pessoas não-binárias, continuando a pensar o mundo numa dicotomia a preto e branco que não perfaz a realidade na sua totalidade.
As palavras que utilizamos carregam um peso. As pessoas são seres de linguagem - a maioria de nós utiliza-a para se expressar, para comunicar, para criar, e de certo modo, para existir. Segundo Rossi (2012), a função mais importante da linguagem é a de representação e reconhecimento social, pois o que se não se nomina, não existe. Assim, a linguagem não diz apenas o que diz, mas também o que está implícito e o não-dito. Portanto, a omissão do género feminino da linguagem é um mecanismo linguístico de opressão e discriminação, estabelecendo uma relação de forças e hierarquia na sociedade. É fácil perceber que excluir consecutivamente a utilização do género feminino e outros em textos e diálogos acusa uma história de discriminação das mulheres, pessoas trans e pessoas não-binárias.
A linguagem cria a realidade e fá-la existir. Assim, não se esgota em ser informativa, mas assume também um caráter performativo.
Falando da utilização da palavra “cona” como insulto, quando Bruno diz que “os” “conas” que no fim-de-semana queriam atravessar a ponte para ir para o Algarve: para além do paradoxo de utilizar o masculino para denominar o universal, até num caso em que se refere a uma palavra associada ao feminino, é preciso reconhecer que, embora isto seja prática comum, o que reside na base desta ideia é uma prática discursiva machista. Tendo em conta que “cona” é uma palavra tipicamente e na sua generalidade atribuída ao sujeito feminino, dizer que alguém é “cona” é associá-lo/a a algo feminino; assim, e neste contexto de insulto, é dizer que ser feminino tem um caráter negativo.
Não é pouco comum ouvir tais expressões, as de conectar palavras associadas ao feminino a algo que fere, mas não apenas: também as palavras associadas a uma sexualidade não-heteronormativa são utilizadas, no decurso da história, enquanto armas de arremesso discursivas - agressões verbais do tipo “maricas”, “seu gay”, “bicha”, etc (enquanto que quando o insulto pressupõe uma necessidade de ser mais forte, as expressões utilizadas recaem em palavras associadas ao género masculino, como “faz-te homem”).
Assim, e situando-nos no campo da tríade género-sexo-sexualidade, que embora possuam definições, conceitos e pesos diferentes, servem neste artigo o mesmo propósito. Este tipo de agressões verbais constituem-se não apenas enquanto traumas, mas também ficam inscritas na memória e no corpo, moldando a subjetividade da nossa relação com xs outrxs.
Deste modo, tal como a linguagem é performativa, também o insulto é performativo, pois não serve o propósito de classificar enquanto verdadeiro ou falso, não serve para descrever a ação, mas para executar a própria ação. Há uma simulação de neutralidade, quando na verdade este tipo de linguagem atribui, necessariamente, juízos de valor sobre a linguagem utilizada - descrevendo alguém de forma depreciativa e atribuindo um valor negativo.
Judith Butler fala da relação entre linguagem, poder e identidade e considera que, enquanto seres formadxs na linguagem, “este poder constitutivo precede e condiciona qualquer decisão que poderíamos tomar sobre ele, insultando-nos desde o princípio, desde o seu poder prévio” (Butler, 2004). Ou seja, o que dizemos não representa apenas aquilo que dizemos, pois não se limita ao tempo da sua utilização: o que dizemos realiza a sua ação no momento em que é pronunciado, mas a isso acrescenta-se uma invocação de uma história - o seu caráter convencional.
Butler também nos diz, ao relacionar género e identidade, que a “linguagem não é um meio ou instrumento externo no qual se despeja um “eu” e onde se vislumbra um reflexo desse eu”. Para a autora, a afirmação do “eu” depende de uma “estrutura de significação” e das “normas que regulam a invocação legítima ou ilegítima desse pronome, pelas práticas que estabelecem os termos de inteligibilidade pelos quais ele pode circular” (Butler, 2017). Assim, é impossível dissociarmos a formação da linguagem que representa os géneros e sexualidade - em específico os marginalizados, como as mulheres e as pessoas de orientação sexual não-heteronormativa - pois a construção da linguagem está vinculada a determinados “objetivos de legitimação e de exclusão” - isto significa que o próprio discurso “produz” aquilo que alega apenas representar, o que torna a linguagem uma espécie de lei, baseada num fundamento fictício, influenciado por juízos de valor societários e mutáveis no tempo, que procuram reivindicar a sua própria legitimidade.
Se concordarmos com Butler que o género se constrói na prática discursiva, deparamo-nos com um dilema: se por um lado o insulto é uma forma de reconhecimento - que garante existência a ser-se “mulher”, “homossexual” - por outro lado é um reconhecimento em forma de armadilha, pois faz-se apenas através de uma imposição de quem fala e com uma intenção negativa, de humilhação e/ou gozo.
Se para toda a gente existem expectativas de género desde a nascença (antes, até), insultar alguém pelo seu género ou orientação sexual é dizer que ter essa marca identitária é estar, necessariamente, abaixo na hierarquia.
Por isso é tão importante repensar as palavras. Judith Butler dizia-nos que não podemos mudar o sistema se não mudarmos a maneira como falamos do sistema. Embora o português seja genderizado, é possível torcê-lo até ser inclusivo, e contrariar a lógica da sua utilização enquanto instrumento de invisibilização. E isso pode começar em pesar as palavras. Apropriar-me das palavras, para que me façam sentido, e deixem de viver apenas nas intenções dxs outrxs.
Aos e às que me chamarão extremista, antecipo já - é extremo pedir os mínimos?
Porque não, não estamos todxs no mesmo barco. Podemos até estar no mesmo mar, mas há barcos que partem em desvantagem: uns têm mais buracos por onde entrar água, uns têm menos remos onde agarrar.
Referências:
Butler, Judith. (2017). Problemas de género: feminismo e subversão da identidade. Orfeu Negro.
Butler, Judith. (2004). Undoing Gender. Nova York, Routledge.
Rossi, Cristina Peri. (2012). La Lengua No Es Inocente. Disponível em https://www.perirossiarticulos.blogspot.com.br. Acesso em 31 de março de 2020.
Fundação Francisco Manuel dos Santos. Igualdade de Género ao Longo da Vida. Disponível em https://www.ffms.pt/FileDownload/68806bbe-ea31-4737-86f3-22c507c82f6e/igualdade-de-genero-ao-longo-da-vida-resumo-do-estudo. Acesso em 30 de março de 2020.
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