top of page

Xs trabalhadorxs sexuais estão sob ataque

19 de Março de 2020 | Texto de Anarcharlot | Publicado originalmente em Freedom News Traduzido por Teresa Velasquez com autorização dx autorx


Xs trabalhadorxs sexuais estão sob ataque - e xs feministas por todo o mundo precisam de estar do nosso lado.


Estávamos no dia seguinte ao 8 de Março e eu estava, obviamente, cansadx, mas ao mesmo tempo satisfeitx por termos conseguido encetar mais uma greve pelo terceiro ano consecutivo em Londres.


Fui ao Twitter procurar fotos das nossas ações, mas em vez disso encontrei algo que me deixou devastada:


No estado Espanhol, xs trabalhadorxs do sexo meus/minhas companheirxs e camaradas tiveram um fim-de-semana difícil. Assisti a um vídeo onde pessoas trabalhadorxs do sexo e trans eram atacadas, em Madrid, pelo simples facto de existirem. Recebi uma mensagem privada de uma amiga de Barcelona a dizer-me que tem estado demasiado assustada para sair de casa.


Que xs ditxs abolicionistxs do trabalho sexual tinham sido encorajadxs a afirmar-se no estado Espanhol - tal como xs TERFs no Reino Unido - já eu sabia. Ao passo que aqui [Reino Unido] esses grupos se alimentaram de apoios mediáticos, em Espanha têm contado com o apoios estatais (quer da parte do Governo central, quer de municípios locais). Embora se afirmem como feministas radicais, são xs maiores e mais institucionais misóginxs das redondezas.


“Abolicionismo” não é, em si, uma palavra com conotação negativa. Quando nos referimos à abolição em colectivos anarquistas, é à abolição de prisões, do Estado, do capitalismo, etc. que nos referimos - tudo coisas boas, portanto. A ideia de que é possível abolir o trabalho sexual ou toda a indústria do sexo sem remover as condições que levaram quem trabalha no sector a procurá-lo é contudo, mais do que inocente e pouco esclarecida - é pura e simplesmente perigosa. Ao longo dos últimos anos, nós - trabalhadorxs do sexo - temos vindo a fazer campanhas, lobbies, manifestações onde avisamos que as medidas que procuram criminalizar e empurrar o nosso trabalho para a clandestinidade dificultam as nossas vidas - e há dados que o confirmam. Em França, onde se encontra em vigor a lei do comprador de sexo (aka “Modelo Nórdico”), mais de 10 trabalhadorxs do sexo perderam a vida nos últimos 6 meses.


Mas este artigo não vai ser mais um daqueles artigos de “é por isto que a descriminalização é a única boa opção”. Temos desses que chegue, por esta altura. Este artigo é sobre a atmosfera violenta e insidiosa que tem vindo a ser criada pelxs ditxs feministas que nos atacaram no 8 de Março (e em todos os dias do ano em que lhes seja possível) em algumas partes do estado Espanhol. Xs mesmxs que afirmam preocupar-se muito connosco, que nos querem salvar, mas que não acreditam que nós possamos ter voz própria e defender a nossa posição. Quando não falamos na nossa luta, somos reduzidxs a escravxs que precisam urgentemente de ser salvxs da violação contínua; quando usamos a nossa voz para defender a nossa posição, somos fantoches do lobbie dos chulos. Enquanto tudo isto acontece, os nossos patrões continuam a ter luz verde para poderem ser, a bem dizer, uma merda - tal como todos os patrões.


Xs trabalhadorxs do sexo são das classes de trabalhadorxs com mais recursos e engenho - e assim tem sido, ao longo de milénios. Estamos a sindicalizar-nos, quer aqui na Grã-Bretanha com o UVW, quer em Espanha com o Sindicato OTRAS. O governo Espanhol tentou ilegalizar o OTRAS quando estxs últimxs receberam a sua licença sindical, apesar de todos os procedimentos e requerimentos legais para se constituírem como um sindicato terem sido devidamente cumpridos e estavam correctos - tudo porque não reconhecem o trabalho sexual como trabalho.


Para melhor compreender o que se passou no dia internacional da mulher no estado Espanhol, entrei em contacto com um dos ramos do OTRAS em Madrid e coloquei-lhes algumas questões. Estas foram as suas respostas:


P: O que aconteceu em Madrid no 8 de Março?


Para compreender o que aconteceu no dia da manifestação, há que compreender em primeiro lugar tudo o que andava a acontecer nos meses anteriores a Março, e no ano anterior. A facção mais fundamentalista dxs abolicionistas andava a pressionar a comissão da rede 8M há dois anos para que tomasse uma posição acerca da prostituição. Até agora, não se tinha chegado a um consenso neste tema, e como tal estava decidido que era um tópico não consensual e uma “linha vermelha” a evitar trespassar, não mencionando o tema nos debates da rede.


Neste contexto, os grupos abolicionistas forçaram, pressionaram, arruinaram assembleias, assediaram e insultaram, entre outros abusos. A culminação desta postura aconteceu nos meses anteriores ao 8 de Março. Um grande número de abolicionistas juntou-se aos grupos de trabalho (especialmente aos grupos de Fronteiras e Corpos) com o objectivo de os arruinar, forçar ações e um discurso claramente abolicionista, bem como uma linha transfóbica. As tensões que geraram tornaram-se insuportáveis, e os abusos recebidos incontáveis.


Obviamente, esta posição da comissão da rede 8 de Março em Madrid (não tem sido a mesma em todos os lugares em Espanha) foi encarada por nós, trabalhadorxs do sexo, como uma aberração - para não se “criar ruído”, para não quebrar o consenso do grupo, foi-nos imposto que nos “comportássemos” e fomos silenciadxs em todos os espaços e manifestos.


Pessoalmente, considero que esta posição de silenciamento dxs nossxs para que xs outrxs “não fiquem zangadxs” foi uma cobardia. Para além do mais, o nosso lado respeitou esta posição da rede, ao passo que o outro lado nunca perdeu uma oportunidade para falar acerca da sua posição onde e quando lhes apetecesse.


Assim, com todo este cenário a decorrer, e com este nível de tensão no ar, alguns dias antes da manifestação o grupo abolicionista lançou um ultimato: iriam levar os seus banners à frente da marcha, ou algo ia acontecer. Obviamente, foi-lhes dito que não, que a distribuição da manifestação seria: o grupo de mulheres com diversidade funcional em primeiro lugar, de seguida os banners com as principais mensagens para este ano, depois as comissão de bairro e aldeias, o resto das comissões e grupos de trabalho da rede 8M e no final outros coletivos feministas não mistos de Madrid (na ordem que preferissem), e que no final ficaria a batukada (uma espécie de banda de samba), e após esta o bloco de género misto.


Xs abolicionistas anunciaram nas redes sociais, então, que se iriam encontrar às 16h00 de Domingo, dia 8 (a manifestação tinha início para as 17h00) em Callao, perto do final da manifestação, onde estava montado o palco para a leitura do manifesto. Tornou-se claro que pretendiam arruinar a manifestação, colocando-se na frente da marcha com os seus banners e mensagens abolicionistas. E foi isso mesmo que aconteceu, mas vários grupos (incluindo a organização da rede 8M e vários coletivos autónomos associados à rede) chegaram em simultâneo à praça para xs impedir de se colocarem à frente, e assim garantir que o espaço da dianteira da marcha era ocupado por quem de direito (isto é, pelos coletivos previamente definidos com consenso de grupo). Durante este confronto houve insultos, ataques e agressões de todos os tipos. No fim, apresentaram queixa contra xs camaradas, denunciando-xs com recurso a filmagens que fizeram no local.



P: Porque é que o manifesto 8M só menciona “prostitutas” duas vezes e não fala acerca do nosso processo de sindicalização, não solicita apoio à nossa luta, etc.?


Tal como expliquei acima, uma vez que nunca houve consenso explícito face ao tema, não só não se tomou uma posição relativamente ao trabalho sexual, como ficou decidido que não se iria falar ou tocar no assunto de forma alguma, o que resultou numa completa invisibilização da nossa luta. Ficou estabelecido que o trabalho sexual era uma linha vermelha que não podia ser passada.



P: Qual é a relação entre xs abolicionistas e o governo?


A maior parte da liderança visível do abolicionismo no estado Espanhol são pessoas ligadas ao PSOE (partido que se encontra a governar, de momento), à UGT e ao CCOO (dois sindicatos convencionais). Também existem posições abolicionistas nos partidos e coletivos comunistas, e a pior parte é que as manifestações mais extremas de abolicionismo encontram-se presentes nas novas gerações de membros e apoiantes dessas organizações (o sindicato de estudantes, por exemplo).


Existe, neste momento, uma luta de poderes pelo controlo e liderança do movimento feminista; esta luta tem vindo a crescer de uma forma sem precedentes nos últimos três ou quatro anos, e toda a gente quer embarcar e apropriar-se do movimento.

Por outro lado, agora que o PSOE se encontra no poder, consideraram que seria uma boa estratégia mediática forçar a adopção de uma legislação abolicionista.


Um outro sector onde existe um enorme elo de ligação ao abolicionismo é o meio académico. No final de 2019 conseguiram censurar uma série de eventos acerca do trabalho sexual na Universidade de Coruña. Os eventos foram organizados por umx estudante universitárix que também era trabalhadorx do sexo. Foi algo nunca antes visto.



P: Como é que vocês se têm sentido com tudo o que tem vindo a acontecer nos círculos feministas?


Acima de tudo temos sentido raiva, impotência, frustração e tristeza. Aqui em Madrid não existem assim tantxs trabalhadorxs do sexo que sejam politizadxs e organizadxs em coletivos e sindicatos, portanto é difícil conseguirmos criar pressão e participar em todos os espaços. Não temos que lidar apenas com o estigma que carregamos enquanto putas, mas também com as tentativas de silenciamento e de expulsão dos espaços de luta por parte dxs nossxs supostxs camaradas na luta feminista. Isto para além da violência que sofremos por parte dxs abolicionistas. Torna-se muito difícil, por vezes, e a maior parte de nós começa a sofrer de ansiedade, dor e raiva.


O lado positivo de tudo isto é que após os acontecimentos deste ano no 8M, muitxs feministas (aliadxs e não aliadxs) compreenderam as barbaridades a que somos sujeitadxs (principalmente porque as sentiram na pele pela primeira vez), e isto está a fazer com que mais gente nos ouça e compreenda que é impossível continuar assim.


Para te dar um exemplo, uma das actividades pré-8M foi um piquete à porta do Congresso, que tinha como principal objectivo denunciar a lei da imigração. Um dos coletivos envolvidos na organização entrou em contacto com um dos nossos membros, uma mulher trans trabalhadora do sexo que também é migrante. No dia em que o evento ocorreu, outros elementos da comissão da rede 8M descobriram e disseram-nos que não poderíamos participar, pois a prostituição seria mencionada e isso iria dar azo a conflitos, que muita camaradas iriam ficar chateadxs por não existir consenso no tema. Como é que podem banir a participação de uma mulher trans migrante? 90% das trabalhadoras do sexo em Madrid são migrantes. Como é que não lhes é permitido falar acerca da lei da imigração, quando são elas que vivem as consequências decorrentes da mesma na sua pele, dia após dia? Em suma, sentimos muita raiva mesmo.



P: Como vos podemos dar apoio, estando no exterior?


Penso que o mais importante para nós é criar alianças e redes de apoio com coletivos como o vosso [Women’s Strike Assembly, UK], de forma a dar eco ao que aconteceu aqui e, cima de tudo, ao que está a acontecer noutras áreas geográficas envolvidas no 8M. No fundo, para dar visibilidade ao facto de que é possível partilhar lutas e espaço e estar presente, mesmo que haja posições divergentes [face ao trabalho sexual].


Mas, acima de tudo, a nível colectivo. Somos muito poucxs, mas nos últimos quatro anos conseguimos dar passos muito importantes e gerar uma série de alianças que não tínhamos anteriormente. É algo esgotante, e por vezes exasperante, pois articular activismo com trabalho e rotinas diárias não é fácil. A partilha de experiências entre nós, se tudo correr bem um dia participarmos em eventos juntas, etc. Em suma, a sindicalização e a possibilidade de expor estas pessoas ou este movimento, de forma a tentar travá-lxs de algum modo. Estão a organizar uma manifestação abolicionista em Madrid no dia 9 de Maio deste ano, vamos ver quantas pessoas conseguem mobilizar.


 

Agradecemos ao Sindicato OTRAS em Madrid por nos terem concedido esta entrevista. Esperamos que este artigo ajude a espalhar a palavra acerca daquilo que está a acontecer dentro do movimento feminista em algumas partes de Espanha.


Entretanto, já que estamos a adereçar o tema, o Comité Internacional para os Direitos de Trabalhadores Sexuais na Europa lançou uma campanha intitulada Feministas pelo Trabalho Sexual no dia 8 de Março de 2020. O teu coletivo pode subscrever o seu femifesto aqui.

Ser umx aliadx do trabalho sexual é mais do que seguir o SWARM nas redes sociais, ou até mesmo participar nas manifestações que organizam: ser umx aliadx significa enfrentar e desafiar o discurso e a prática de quem nos tenta silenciar dia após dia; significa ajudar a propagar a noção de que a descriminalização e a sindicalização e união das e dos trabalhadorxs é essencial dentro da indústria do sexo. Significa também partilhar informação acerca dos nossos projectos, fazer donativos para as nossas organizações e campanhas, aparecer nas ações dos nossos coletivos e sindicatos, escutar-nos em público e em privado sem nos julgar. Ser aliadx do trabalho sexual significa também não conceber a nossa existência como excitante ou nojenta - somos trabalhadorxs que tentam sobreviver neste inferno capitalista, tal como todas as outras pessoas.


~Anarcharlot


Anarcharlot é uma trabalhadora do sexo migrante, activista com a Women’s Strike Assembly e membro do Sindicato UVW.


Texto de Anarcharlot | Publicado originalmente em Freedom News | Traduzido por Teresa Velasquez com autorização da autora
163 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Commentaires


bottom of page