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Bateram à porta, era Abril: 17 anos de despenalização do aborto

Texto por Catarina Valente Ramalho, publicado originalmente no jornal Público. 11 de Fevereiro de 2024.

Bateram à porta. Abrimo-la para a chegada dos 50 anos do 25 de Abril com a certeza de que a garantia de serviços públicos é o edificado central da democracia e que a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) é uma das suas paredes-mestras. Construída de pedra e cal sobre uma luta de várias décadas, um segundo referendo e uma maioria social forjada pela sociedade civil, o movimento feminista e os profissionais de saúde, a Lei n.º 16/2007, que consagrou o direito ao acesso ao aborto seguro, gratuito e a pedido da pessoa grávida, tornou Portugal um país melhor e mais democrático.


Passados 17 anos da despenalização da IVG, importa olhar para o estado das coisas, mais do que emoldurar a vitória no referendo e pendurá-la numa ala da democracia portuguesa. Nomear os recuos e o que permanece por fazer, recusando regressar ao debate entre a clandestinidade do passado e o direito, mas fazendo do mesmo memória e combustível para disputar a alteração de uma lei do antigamente e um maior investimento no Serviço Nacional de Saúde para que o acesso ao aborto seja um direito efetivo.


Os números dizem-nos que, em Portugal, o tempo médio de espera entre a consulta prévia e a realização da prática é de cinco dias e que das 40 unidades hospitalares com especialidade de Ginecologia e Obstetrícia preparadas para a IVG cerca de 30% não a realizam com recursos próprios. O boicote burocrático ao direito ao aborto passou a ocupar com regularidade as manchetes nos últimos meses e tornou visível que a objeção de consciência é um impedimento real ao cumprimento da lei. Contudo, reorganizar os serviços não resolve o problema, porque a declaração de objeção de consciência por profissionais de saúde não tem de ser informada previamente. A solução tem de ser outra.


O enquadramento da lei não nos serve: impõe um limite gestacional do passado, as dez semanas, que é desadequado e curto, se comparado com as legislações da maioria dos países europeus, que o situam nas 12 semanas. Observando este quadro, e enfrentando as pessoas grávidas sucessivos reencaminhamentos quando se dirigem aos serviços de saúde indicados, abortar em Portugal tornou-se um jogo de sorte.


Num país democrático, o acesso a um direito não pode, sob nenhum pretexto, ser um jogo de sorte, recusamos esse desfecho e exigimos ao Estado português: alargar o prazo de limite gestacional para as 12 semanas; o fim do período de reflexão obrigatório; o fim da obrigação da intervenção de dois médicos/as para a realização da IVG; alargar a prática da IVG médica aos cuidados de saúde primários; assegurar que a objeção de consciência não constitua um entrave ao cumprimento da lei; investir na Saúde Sexual e Reprodutiva em contextos de formação e sensibilização da sociedade e de profissionais de saúde.


Bateram à porta. Abrimo-la, sem demoras, porque queremos uma lei de acesso ao aborto adequada ao presente e serviços de saúde públicos que assegurem a sua aplicação em todo o território nacional, de forma livre, segura, gratuita e universal.



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