republicação de Entrevista a Maria Gil
24 de Junho de 2021 | Republicação de entrevista de Helena Ferreira a Maria Gil | Publicado originalmente em Cientistas Feministas a 5 de Agosto de 2017
Combinei encontrar-me com a Maria Gil nos jardins do Palácio de Cristal. Um dos locais mais bonitos do Porto, Portugal. Amplo e verde, permite-nos usufruir de todos os raios de sol a que nós, mulheres, temos direito! Afinal, estamos no Verão! E, vamos falar de feminismos, mais propriamente de feminismo cigano. A Maria Gil é mulher e cigana. “Não é mulher vírgula cigana”, explica, “é mulher e cigana, o e é muito importante porque acrescenta algo. Ao facto de eu ser mulher, acrescento o cigana, é uma soma e o resultado desta soma é o que eu sou e me orgulho muito de ser”. Para além disto, também é feminista desde os dez anos de idade e sente na pele a intersecção destas três fortes camadas: mulher e cigana e feminista.
Helena Ferreira (HF) – Diz-me como te tornaste mulher e resistente no seio de uma comunidade que, por um lado, é vítima de violência constante ao longo dos séculos por parte do patriarcado “branco” heteronormativo e por outro, é vítima do seu próprio patriarcado dentro da sua comunidade.
Maria Gil (MG) – A minha primeira resistência começou aos dez anos de idade, quando comecei a questionar porque me tratavam de forma diferente em relação aos rapazes e em relação às meninas da comunidade dita “branca”. Por exemplo, nunca percebi porque é que não podia estudar até porque o meu pai que era cigano sempre me disse que eu teria que estudar mas, entretanto este quadro alterou-se com a sua morte. De repente, fico sem pai, com uma mãe extremamente fragilizada e conservadora, que uniu a sua dor à necessidade de defender a sua versão da tradição e que aos sete anos me veste de negro e me tira da escola. Aí tomei a consciência da gravidade da situação, porque estava a ser alvo de uma superprotecção mal direccionada. Quando regresso à escola, com oito anos, volto uma menina vestida de negro e sou alvo de bullying por parte das outras crianças. Perdi o direito à cor e perdi o chão. Estou a falar nisto porque é muito importante que todas as mães e pais percebam que tirar as crianças da escola, principalmente as meninas, é uma violência e que só as estão a encaminhar para situações de fragilidade social e a dependências de terceiros.
HF – Existe a ideia pré-concebida de que a comunidade cigana é extremamente machista… Mais que a nossa, a dos ditos “brancos”?
MG – Não. O patriarcado cigano, como todas as comunidades ciganas de uma forma geral, encontra-se entrecruzado pelas conjunturas de marginalidade, subalternidade e exclusão social. Neste sentido, reivindicar a masculinidade e responder às normas que lhes são impostas é de vital importância para a afirmação da própria identidade, estigmatizada e desconsiderada pela sociedade dos payos (pessoas que não são ciganas). Por isso, não os posso considerar mais machistas, mas sim homens que se movem pelas circunstâncias que o meio social lhes proporciona que, por vezes, são extremamente violentas. Transgredir as leis e as normas na nossa comunidade ganha uma visibilidade absoluta. Há sempre a tendência para apresentar a nossa população como um grupo homogéneo, como se o sexismo e a opressão patriarcal fossem prerrogativas de culturas exoticizadas como a nossa. Por exemplo, se ocorrer uma violação dentro da comunidade cigana, os ciganos passam a ser todos violadores e é uma notícia que tem grande impacto na comunicação social.
HF – Sim, dá a sensação que assistimos ao aumento da violência contra a população cigana na Europa, o que se comprova com as declarações racistas que temos presenciado nos últimos dias no nosso pequeno país. Como sentes isto?
MG – Acho que toda esta violência social geral que se tem vindo a desenvolver, tem como ponto de partida o patriarcado. Não se chegava a este ponto de violência racial se as sociedades não colocassem na sua organização as relações de alteridade, de superioridade de uns seres humanos sobre os outros. E todos estes acontecimentos tornam urgente a necessidade de um activismo sempre presente e de um feminismo cigano em estado de alerta. Por exemplo, devíamos estar já nesta fase, na primeira década do século XXI, a discutir a partilha de responsabilidades e a afirmação nos processos de integração e de negociação com a sociedade dita maioritária, isto é, termos voz de igual para igual e isso não acontece. Os payos, e as payas também, ainda pretendem falar por nós, dizer-nos o que está certo e o que está errado. A cultura dominante impõe-nos uma identidade e insere-nos numa gaveta e a questão é como constróis e desconstróis a tua própria identidade e resistes a ser colocada nessa gaveta. Por outro lado, e em simultâneo, tens as lutas dentro da tua própria comunidade, pela visibilidade das mulheres e igualdade de género, o que não é fácil porque o machismo é tão perverso que gera nas mulheres um sentimento de protecção e elas sentem-se umas patetas alegres (vítimas felizes), porque o homem toma conta delas. São estas patetas alegres que defendem a divisão entre as mulheres sérias e as outras. As sérias são as firmes, as castradoras, as grandes defensoras do patriarcado contra aquelas que assumem as suas identidades, que ousam e que são verdadeiras consigo mesmas e com a dupla sociedade que enfrentam(a dos payos e a cigana) e que fazem as suas opções. Tenho a certeza que se as patetas alegres tivessem noção que são oprimidas, mais mulheres ciganas seriam feministas e livres.
HF – Existem vários estereótipos instaurados no nosso imaginário social: todas as mulheres ciganas são feirantes (vendedoras ambulantes), não estudam, casam cedo e com ciganos, e são mães de famílias numerosas.
MG – Isso é tão ridículo como eu dizer que as mulheres payas portuguesas têm todas bigode e vestem todas de preto. Sempre existiram mulheres ciganas resistentes, embora não tenham sido apelidadas de feministas. A verdade é que não têm que ser apelidadas de feministas ou considerarem-se assim. Existem mulheres ciganas em todas as profissões e que estudam. Já existem muitas mulheres ciganas licenciadas e doutoradas e que não casam nem têm filhos. Ou seja, que fazem as suas escolhas e lutam por elas. Tenho, no entanto, que referir que o grande desafio é criticar as estruturas patriarcais internas e, ao mesmo tempo, tentar evitar reforçar os estereótipos negativos sobre a nossa comunidade, por exemplo, porque defendo que todas as meninas devem estudar, não posso permitir que isso seja visto pelos payos logo como: “Pois, eles não deixam as meninas estudar porque as casam muito cedo”, ou seja, evitar que as reivindicações de género se tornem um instrumento de alterização e de estigmatização de um grupo subalterno e racializado. Tenho ainda que falar aqui da interseccionalidade que mostra o cruzamento de diferentes opressões: de género, classe, “raça” e sexualidade, sofridas pelas mulheres ciganas. As formas de discriminação interagem umas com as outras, há que afirmar a consequente necessidade de uma luta plural contra o racismo, a opressão de classe e contra o machismo tanto interno, como externo às comunidades.
HF – Passava dias a falar contigo, mas temos que terminar por agora, claro, porque vamos voltar a conversar, com toda a certeza. E, para terminar, tenho que te perguntar: O que podemos nós, mulheres “brancas” feministas fazer para apoiar as mulheres ciganas?
MG – Deixar de lado o paternalismo e sobretudo valorizar a nossa voz, porque a temos, como vês. Não podem impor-nos a vossa cultura. Deixem-nos evoluir conscientemente, construir e desconstruir a nossa identidade, tornar-nos mulheres, como referiu a Simone de Beauvoir. Não nos salvem, não precisamos de ser salvas. Nós somos a semente das Mulheres e Ciganas que não foram queimadas e esterilizadas. Existimos e resistimos.
Republicação de entrevista de Helena Ferreira a Maria Gil | Publicado originalmente em Cientistas Feministas a 5 de Agosto de 2017
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