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O mito da mulher negra - o eu genderizado e racializado

Texto por Catarina Valente Ramalho, publicado originalmente em Buala.

Simone de Beauvoir, na sua obra O Segundo Sexo (Beauvoir, 2015), destrói o discurso essencialista atribuído aos sexos, ao expor as normas e expectativas heterodefinidas e atribuídas à mulher, ao feminino – o mito. Do latim mythos, o mito diz respeito a uma crença diegética, não factual, contudo normalizada e disseminada enquanto discurso. O presente texto propõe a dissecação das identidades e do género, enquanto mitos suportados no discurso, com especial foco na mulher e na/o negra/o, compreendendo, assim, o materialismo histórico engeliano como lógica fundamental para a perceção dos discursos, enquanto processos construídos na história em vez de verdades essenciais e naturais à sociedade (Engels, 1986).

Judith Butler, autora da Teoria Queer, apresenta-nos o género como uma produção discursiva de índole performativa, que assume o papel de norma – o poder da repetição para que a narrativa se amplie enquanto norma – como efeito de ações constitutivas que normalizam o género atribuído ao sujeito (Butler, 2017). Note-se a utilização do verbo “atribuir” de forma a compreender o género como uma norma ou expectativa a cumprir e não uma expressão interna, essencial ao individuo. Desta forma, compreende-se a nomeação do género como um acto coercivo, exterior ao sujeito e heterodefinido pelo outro. 


“Gender is the repeated stylization of the body, a set of repeated acts within a highly rigid regulatory frame that congeal over time to produce the appearance of substance, of natural sort of being.” (Butler, 2006).


Ao excerto da obra Gender Trouble, de Butler, é significativo acrescentar a perceção da autora quanto ao género não ser performatizado pelo sujeito, que não assume a função de agente activo na performatividade do género, mas de inscrição de ações múltiplas que o genderizam (Butler, 2010). Contrariando a doctrine of internalization de Foucault (Foucault, 1991), Butler apresenta-nos o model of inscription que nega a internalização da lei/norma, mas a sua incorporação – o género não é internalizado, mas inscrito no corpo, revelando-se uma ficção política encarnada (Preciado, 2019).

Neste processo, aquando da menção ao contributo butleriano para a matéria em análise, é condição sine qua non considerar a importância da linguagem para a construção discursiva do género, sendo que a autora compreende que é a primeira que constrói o segundo, e não o oposto. Veja-se que na língua portuguesa, brutalmente genderizada, a própria palavra “sujeito”, em inglês “subject” (língua em que a palavra não assume um género), assume o género “masculino”, marginalizando o género feminino da palavra (“sujeita”, em língua portuguesa) ou a variação LGBTQI da mesma – “sujeitx” – qualificada como erro ortográfico. O mesmo se reproduz relativamente à palavra “objecto”, em inglês “object” (língua em que a palavra não assume um género), cuja terminologia correcta é exclusivamente tratada no masculino, sendo “objecta” e “objectx” qualificados como erros ortográficos, na língua portuguesa. Neste exercício, realizado à priori por Grada Kilomba (Kilomba, 2019), expõe-se a construção binária da linguagem e a relação de poderes nela impressa, partindo do caso da língua portuguesa, e a invisibilização de outras assunções de género, o que nos transporta para outro ponto crucial da obra de Butler. Pela subjectividade da norma, construída, repetida e normalizada discursivamente, ao sujeito é possível o não cumprimento da mesma, a recusa do género (feminino ou masculino) que primariamente lhe seja atribuído. No entanto, o acto de resistência nega-lhe o seu cumprimento enquanto sujeito, a sua qualificação como um erro de ortografia e punição e estigmatização perante a ordem heteronormativa, destacando a já supramencionada definição de género da autora: “Gender is the repeated stylization of the body, a set of repeated acts within a highly rigid regulatory frame (…)” (Butler, 2006). Ao sujeito apenas é reconhecido o gineceu ou o androceu, não a metamorfose das duas possibilidades.


O eu mutilado 

Esse enquadramento, construído pela linguagem, traduz-se no sistema patriarcal branco – o patriarcado branco é o sistema absoluto de poder e, desta forma, a “raça”1 torna-se uma variável necessária a considerar aquando da análise do patriarcado/capitalismo branco ou patriarcado racial, que bell hooks assim denomina para sublinhar a importância da “raça” no tratamento das questões de género. Concluo, assim, que o feminismo negro é a única resposta de resistência absoluta ao modelo patriarcal branco e que a questão racial transporta a mulher negra para um lugar comum de opressão conjuntamente com o homem negro, ambos racializados, sendo esse lugar comum de opressão resultado do mesmo sistema que genderiza binariamente a sociedade. 


Partindo, novamente, do postulado de Butler de que os corpos são uma encarnação/impressão de determinada realidade histórica (Butler, 1988), é essencial tratar o segundo tema proposto – o mito da/o negra/o. O colonialismo, tratado nos antigos estados colonialistas, como é o caso português, como “o período de expansão marítima”, termo cuja utilização recuso, mas que prova a importância da construção de narrativas através da linguagem, é o momento histórico que imprime o corpo da/o negra/o como um sujeito-objecto. Tal como exposto na obra Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe (Mbembe, 2017), são vários os autores que contribuíram para a edificação do discurso em que a/o negra/o é entendida/o como uma figura imaginada, isolada, odiosa. Como indicado pelo Professor da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, Hegel escreveu que as/os negras/os são estátuas sem linguagem ou consciência de si próprios, incapazes de se dissociar da natureza animal com que se misturam, poço daquilo que está morto. Testemunhos semelhantes cimentaram uma narrativa imaginada e partilhada que compreende a/o negra/o, filha/o de África, continente devorador, como uma figura não social e um ser vazio de civilidade a ser convertida/o, salva/o, pela cristandade ocidental (Crummell, 2017). Regressando ao conceito de heterodefinição, a/o negro é-lo duplamente, pois nasce suprimida/o na narrativa de ser negra/o e do género que lhe é atribuído, sendo o seu corpo impresso duplamente.


No caso da mulher negra, a dupla opressão racial e sexual, tal como referido por hooks, amputa o reconhecimento da mulher negra como mulher e sobrepõe a característica racial, pois, relembrando o que reforçado e tratado por Mbembe na obra supramencionada (Mbembe, 2017), a negra e o negro são desumanizados e reduzidos à condição de uma existência de objecto – o resto. A mulher negra não partilha a cultura de Afrodite, mas a de Anastácia, a escravizada, pois a sua feminilidade não é reconhecida, não é expectável que seja desejável. A mulher negra não é imediatamente mulher, é primeiramente negra. 


Anastácia é uma figura da resistência abolicionista concentrando em si vários cultos entre as comunidades afro-brasileiras. Quanto à sua história, dado que não existem factos sobre a veracidade dos acontecimentos, Anastácia, que se diz ser originária de uma família real quimbundo ou nascida na Baía após a captura e transporte da sua mãe grávida nos navios negreiros de África para o Brasil, terá sido castigada a usar uma coleira de ferro e uma Máscara de Flandres (utensílio comum para punir os escravizados e símbolo da opressão e silenciamento da voz negra) pelo seu proprietário branco após se ter recusado a ter relações sexuais com o mesmo. Imperam ainda as versões de que o castigo se deveu à resistência e ativismo de Anastácia ou aos ciúmes que a mulher branca do seu senhor branco contraía da sua beleza (Kilomba, 2019). Contudo, observando o retrato de Anastácia, a única representação clara é a da desumanização do sujeito negro durante o período colonial, silenciado e reduzido à ameaça, que quer “tomar o que é nosso” – narrativa estrutural do discurso identitário branco que entende o Outro como um perigo, uma intrusão à sua segurança, e entende-se a si próprio como uma vítima, um mártir que civiliza o sujeito não civilizado.


Revela-se essencial equacionar a noção de interseccionalidade na luta feminista, que não se sintetiza no jogo binário de forças desiguais entre homem opressor e mulher oprimida, antes na realidade de que existe uma desigual relação de poderes, inclusive, entre a mulher branca e a mulher negra. Retomando a ideia de Marx de que a mulher é a proletária do próprio proletário (Marx, 2016), verifica-se também uma relação de subjugação entre a mulher branca e a mulher negra, pela vantagem que a mulher branca tem não sendo racializada. Assim, apenas a lente intersecional, assumindo a realidade de uma opressão racial, pode combater a narrativa patriarcal branca, pois o sexismo e o racismo não são dois sistemas de opressão de génese e agressões comparáveis, mas dois fluxos opressivos distintos, produzidos pelo mesmo sistema, que agridem em uníssono a mulher negra. 

Exige-se a recolocação da mulher negra na História, suprimida no espaço vocal dos dois espectros de opressão que a atingem – o sexismo e o racismo -, não sendo contabilizada como sujeito válido, ultrapassada pelo homem branco, pela mulher branca e pelo homem negro. Recusaremos a invisibilização absoluta da mulher negra como parte da História, o não reconhecimento da sua existência e das suas experiências (Young, 1996).


O uso do vocábulo “raça” no presente texto perfaz exclusivamente efeitos de contextualização histórica aquando da referência a autoras/es e movimentos, recusando o valor da mesma na atualidade. Por consequência, o vocábulo encontrar-se-á escrito exclusivamente entre parênteses.


Referências Bibliográficas 

Beauvoir, S. d. (2015). O Segundo Sexo. Quetzal Editores.


Butler, J. (1988). Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and Feminist Theory. Theatre Journal, 519-531.


Butler, J. (2006). Gender Trouble. Inglaterra: TAYLOR & FRANCIS LTD.


Butler, J. (2010). Bodies That Matter. Taylor & Francis LTD.


Butler, J. (2017). Problemas de Género. Orfeu Negro.


Crummell, A. (2017). The Future of Africa. Hansebooks.


Engels, F. (1986). A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Editorial Avante.


Foucault, M. (1991). Discipline And Punish. Penguin Books LTD.


Kilomba, G. (2019). Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro.


Martins, B. S. (2015). Colonial Violence and Testimony: Toward a Post-abyssal Memory. Revista Crítica de Ciências Sociais, 105-126.


Marx, K. (2016). Peuchet: Do Suícidio. Lisboa: Antígona.


Mbembe, A. (2017). Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona.


Preciado, P. B. (2019). Manifesto Contra-Sexual. Lisboa: Orfeu Negro.


Young, L. (1996). Missing Persons: Fantasizing Black Women in Black Skin, White Masks. Em A. Read, The Fact of Blackness: Frantz Fanon Visual Representation (pp. 86-101). Londres: Bay Press.


 

Texto publicado originalmente em Buala.


Catarina Valente Ramalho é estudante de Mestrado em Estética e Estudos Artísticos e parte d'A Coletiva.

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