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Tempo de luta(s)

Texto de Tainara F Machado

Estamos num momento chave da história mundial, no qual todos os países vivem questões sanitárias que influenciam na forma de organização e funcionamento societal de que estávamos acostumados. A solução para frear a propagação do vírus Covid-19 é o isolamento social. Como consequência desse isolamento entra em cena o teletrabalho. Junto com o teletrabalho entram as crianças sem escolas, todos os membros da família dentro de casa e muitas outras questões que quem estão acostumadas a gerir são as mulheres; não por escolha, mas pelo machismo estrutural que vivemos. Ironia do destino quando dizem que quem é o provedor da casa é o homem, quando toda a gente sabe que - ainda hoje - quem coloca a casa para funcionar são as mulheres. Esse período de crise pode significar uma oportunidade para rever essa divisão de papéis sociais.


Na situação que estamos vivendo, de quase calamidade pública, são as mulheres as mais afetadas com a mudança de funcionamento que é necessária neste momento. Uma sobrecarga maior do que a já vivida cotidianamente está instaurada. Sabemos que as mulheres são as mais prejudicadas por condições de trabalho precário e de falta de direitos de proteção social.


Em situações de precaridade os desafios são ainda mais graves. Dado o exemplo de quem trabalha no regime precário de recibos verdes (artistas, trabalhadoras domésticas, trabalhadorxs da restauração, etc.) para levar a cabo as medidas de contingência e permanecer em casa é necessário deixar de trabalhar, o que significa deixar de ter rendimentos. Ficar sem qualquer tipo de salvaguarda financeira e social também é a realidade imposta aos trabalhadorxs a recibos verdes em situação de isenção ou às pessoas com contrato de trabalho e sem proteções previdenciárias, o que ocorre para quem tem menos de um ano de contribuições.


Conforme o relatório “Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade”, de janeiro de 2020 da OXFAM - Oxford Committee for Famine Relief - as mulheres são responsáveis por 75% de todo trabalho de cuidado não remunerado no mundo. Ou seja, para além da precariedade do seu trabalho elas são responsáveis pela grande parte de trabalhos que são necessários, porém não remunerados. Porquanto, no âmbito dos cuidados, para além de ser um trabalho pertencente a uma divisão sexual do trabalho, ele normalmente recai sobre trabalhadoras imigrantes. As trabalhadoras domésticas e dos cuidados são marcadamente racializadas e com índices elevados de total desproteção social. A precariedade e a vulnerabilidade são os elementos que unificam as experiências destas mulheres; portanto, estar ilegal ou não integrada e realizar um trabalho de caráter da reprodução social é garantir sua invisibilidade duplamente (CARPENEDO; NARDI, 2013). Além das mulheres já não terem o mesmo espaço em cargos públicos e privados, e nem os mesmos salários de um homem que exerce a mesma função. E, quando o tem, são questionadas como fazem para dar conta do serviço da casa quando parecem ocupadas demais para fazer isso, como verificado na entrevista feita pelo jornal Expresso à Ministra Marta Temido.


O mesmo relatório alerta que, conforme os “[...] cálculos da Oxfam, o trabalho não remunerado de mulheres vem agregando pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano em valor à economia, cifra três vezes mais alta que a estimada para o setor de tecnologia. No entanto, embora altíssima, essa cifra pode estar subestimada. Devido à falta de disponibilidade de dados, ela foi calculada com base no salário mínimo, e não em um salário digno, e não foi considerado o valor mais amplo para a sociedade do trabalho de cuidado e seu papel na economia. Se fosse possível estimar a cifra efetiva desse apoio, o valor total do trabalho de cuidado não remunerado seria ainda mais alto. O que se observa visivelmente é que esse trabalho não remunerado está alimentando um sistema econômico sexista, que retira recursos de muitos e os coloca nos bolsos de poucos” (p.9).


O trabalho reprodutivo e dos cuidados acontecem em todas as sociedades de uma forma ou de outra, e esta reprodução social são realizadas por mulheres e que “[...] abrange actividades que sustentam seres humanos enquanto seres sociais consubstanciados que não só tem de comer e dormir, mas também de criar os filhos, cuidar das famílias e manter as suas comunidades, tudo isto ao mesmo tempo que perseguem seus sonhos para o futuro” (Aruzza, p.112). Assim, é óbvio que “[...] o trabalho remunerado para a produção de lucro não poderia existir sem o trabalho não-remunerado de produção de pessoas” (Aruzza, p.114).


Há quem diga que este momento em que vivemos é de conscientização de muitas questões paradigmáticas e que as transformações já estão a acontecer por mais que ainda não sejam visíveis. Passar momentos de melancolia em casa, desamparado em meio às imprevisões do futuro - conforme diz Debora Diniz à folha - e que trazem a tona a importância dos cuidados e do amparo para o desenvolvimento da sociedade e, de frente às possibilidades ou não de reorganização social de um não lugar, não pertencimento social - conforme Alain Tourine diz ao El Pais - remete-nos ao dilema entre podermos ir para um lado, do egoísmo, ou, para o outro, da empatia, mas, que no fim, são os dois lados da mesma moeda. A linha tênue se encontra em até que ponto estas previsões dão conta das reais transformações dos modos de ser, agir, estar, consumir e de uma consciência de classe, sociedade e talvez as transformações destas. É uma linha tênue de um possível futuro que não sabemos, vai depender de que lado a moeda cairá.


Cinzia Arruza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser no livro/manifesto “Feminismo para os 99%” já nos alertavam sobre a importância da luta, de ter o poder sobre nossas reivindicações e ter o poder de reivindicar. “A luta é uma oportunidade e uma aprendizagem. Tem o poder de transformar quem nela participa, de desafiar nossos preconceitos sobre nós mesmos e de reformular a nossa perspectiva do mundo. A luta tem o poder de aprofundar o entendimento que fazemos da opressão a que somos sujeitos - das suas causas, de quem dela beneficia e do que pode ser feito para a debelar.” (2019, p. 95). Que sejamos provocadas/inspiradas a dar uma nova interpretação aos nossos interesses, “[...] o poder de nos instigar a reavaliar quem serão os nossos aliados e quem serão os nossos inimigos. Tem o poder de alargar o nosso círculo de solidariedade para com os oprimidos e aguçar o nosso antagonismo para com os nossos opressores.” (2019, p. 95). Ou seja, para que nosso destino não fique ao acaso de uma moeda a quarentena feminista é também de luta, de ter o poder sobre nossas reivindicações. Soltemos nossas vozes!


 

Fontes:


Arruzza, C., Bhattacharya, T., & Fraser, N. (2019). Feminismo Para os 99%. Penguin Random House Grupo Editorial Portugal.


Bassets, M. (31 de Março de 2020). Alain Touraine: "Choque económico do coronavírus pode produzir reações fascistas". El País. Obtido de El País: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-31/alain-touraine-choque-economico-do-coronavirus-pode-produzir-reacoes-fascistas.html?ssm=FB_CC


Carpenedo, M., & Nardi, H. C. (2013). Mulheres Brasileiras na divisão internacional do trabalho reprodutivo: construindo subjetividade(s). Revista de Estudios Sociales No.45, 96-109.


Passos, Ú. (6 de Abril de 2020). Mundo pós-pandemia terá valores feministas no vocábulo comum, diz antropóloga Debora Diniz. Folha de S. Paulo. Obtido de Folha de S. Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mundo-pos-pandemia-tera-valores-feministas-no-vocabulario-comum-diz-antropologa-debora-diniz.shtml


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